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Coração santo, tu reinarás,…

Alexandre Henrique Gruszynski  [1]

Conheci esse canto no final da década de 30 ou no início da década de 40 do século passado. Na Paróquia a que eu então pertencia era cantado de quando em vez.

Criança, então, tinha eu aprendido, no Catecismo, que Jesus, Filho de Deus Pai, era verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Cantavam, porém, que Jesus era Pai amoroso, e era-me difícil, naquela idade, compreender que um homem solteiro, como Jesus, pudesse ter filhos. Porque Jesus era (e é) o Filho unigênito de Deus Pai, e os filhos de Jesus (o Pai amoroso), teriam de ser pessoas humanas, não divinas… e onde estavam, quem eram?  Não tinha eu, porém, então, com quem questionar o assunto…

Passando a frequentar outros ambientes católicos, logo adiante, vi-me envolvido pelo Movimento Litúrgico, revitalização que foi ocorrendo na Arquidiocese de Porto Alegre, a partir, mais amplamente, dos anos 50.

E nesses ambientes, marcados por celebrações em que se participava de modo ativo e consciente, tal canto sumiu.

Cabe lembrar que, lá pela década de 60 dos anos 1900, um artigo do Rev. Joseph Comblin publicado na Revista Eclesiástica Brasileira mostrava como esse ponto fundamental da doutrina cristã, que Deus é um Deus único em três distintas pessoas, era não só mal apresentado em muitos meios da Igreja, mas (talvez por isso mesmo) mal conhecido entre os fiéis.

Não creio que o abandono de tal canto, em Porto Alegre ao menos, tenha sido motivado por essa falha teológica. É que o estilo do texto e do canto — verdadeira canção romântica — é profundamente destoante do que se esperaria de um canto a ser utilizado em celebrações litúrgicas [2]. A Arquidiocese de Porto Alegre, naqueles anos 60, era reconhecida até pelo Papa Paulo VI como avançada na revitalização litúrgica, como ele manifestou certa vez ao então Bispo-Auxiliar José Ivo Lorscheiter.

Assim, nem a primeira (1966) nem a segunda (1970) versão do Canto do Povo de Deus, publicações da Comissão Arquidiocesana de Música Sacra de Porto Alegre, o contém. Igualmente o Livro de Cantos da Arquidiocese de Porto Alegre (A Comunidade Canta), mais recente, não o contempla. Tampouco o Manual Cantos e Orações da Editora Vozes, da década de 80. Não figura, igualmente, no Hinário Litúrgico organizado pela CNBB e publicado pelas Edições Paulinas.

Voltei a ouvir o canto, porém, na Catedral de Porto Alegre, talvez já desde há uns vinte anos, por ocasião de Missas da 1ª. sexta-feira do mês.

Tão-logo isso me foi possível, tratei de fazer chegar, à pessoa então responsável pelos cantos nas celebrações, a impropriedade contida na versão que cantavam, de chamar Jesus, o Filho de Deus, de Pai, naquela estrofe que diz Jesus amável, Jesus bondoso, Pai amoroso,… E continuei a manifestar a minha inconformidade sempre que para tanto tive ocasião.

Folheando, há uns três anos, uma vasta coletânea de cantos preparada pelos Salesianos [3], encontrei, por acaso, esse canto, mas na versão ali constante, ao invés de Jesus ser qualificado como Pai amoroso, a palavra Pai foi substituída pela palavra Deus. Quem fez tal substituição não mudou o ritmo, mas corrigiu o erro teológico.

Fiz a sugestão de tal troca, então, aos cantores da 1ª. sexta-feira, e cantaram assim uma ou duas vezes, retornando depois a Jesus-Pai.

Ora, embora talvez nem todos o tenham percebido, o canto é um instrumento extremamente funcional para que se memorize um texto. Basta tentar declamar sem canto, por exemplo, o Hino Nacional Brasileiro, para convencer-se de que o canto facilita a conservação do texto na memória. Não é por nada que a Igreja, secularmente, insiste no uso do canto nas celebrações: é também para que se conservem na memória as verdades que prega. O canto, assim, é um instrumento catequético precioso. Quando, porém, a mensagem é falsa ou inverídica, ele se torna pernicioso.

Proclamar, pois, cantando (e dessarte pondo no subconsciente dos fiéis) que o Filho é o Pai, constitui indubitavelmente uma importante «desevangelização»: pois a existência de três pessoas distintas em um único Deus é, para a Igreja, ponto fundamental.

Buscando elementos para escrever o presente artigo procurei o texto ou a partitura em várias publicações impressas a meu alcance, além das antes mencionadas, e só o encontrei, e com o texto Pai amoroso, em um Livro de Hymnos e Canticos Espirituaes, edição FTD, de 1935.

Pesquisando-se pelo mesmo canto, porém, na Internet, encontram-se dele variadas versões do texto, com ou sem notas, com ou sem cifras de acordes, quase todas com a correção indicada: substituir a palavra Pai pela palavra Deus. Aparece também em castelhano (youtube), com o estribilho correspondente ao nosso e com duas versões para as estrofes, uma semelhante à brasileira, mas com Deus e não Pai, e outra completamente diferente.

Veja-se, por exemplo:

http://www.folhetosdecanto.com/2014/06/coracao-santo.html

https://www.letras.com.br/catolicas/coracao-santo-tu-reinaras

http://catedralcolatinacantos.blogspot.com.br/2015/05/05-06-2015-oitavario-sag-coracao-de.html

https://www.youtube.com/watch?v=NeJUnkmn98E

https://www.cifraclub.com.br/padre-reginaldo-manzotti/coracao-santo/

https://www.letras.com.br/catolicas/coracao-santo-tu-reinaras

http://www.superpartituras.com.br/t–mondia/coracao-santo–tu-reinaras  [4]

Estou convicto, pois, de que esse canto é inadmissível, na Igreja Católica, com o texto que chama Jesus de Pai. Ademais, pelo seu conteúdo romântico e individualista, não condiz com celebrações litúrgicas.

Se cantado à saída da Missa, então, incide ademais na reprovação da Santa Sé, que expressamente declarou já em 1972, nos inícios da reforma litúrgica determinada pelo Concílio: a reforma não quer que as intimações da liturgia sejam contraditadas pela realidade. A intimação «Ite, missa est» (que na tradução para o português aparece como «Ide em paz, e o Senhor vos acompanhe») não teria sentido se os fiéis fossem depois convidados a permanecer…   …O canto… após tal despedida…   …não seria concorde com as palavras de despedida…   …Se é que as palavras da liturgia têm algum sentido, o lógico é que o povo vá embora. [5]

NOTAS:

[1] com a colaboração de Yandara Terezinha Araujo Conte.

[2] Como em desuso caiu, provavelmente pelo mesmo motivo, o Wir wollen Gott, composto originalmente (1908) em francês (Nous voulons Dieu,  letra de François-Xavier Moreau)…

[3] que há uns vinte anos atrás me foi presenteada por um colega canonista de Lorena, SP, reunindo, ao que parece sem maiores preocupações de escolha, variados cantos.

[4] Partitura para Banda (sem letra).

[5] Cf. Notitiae, 1972, pág. 303-304.